A rolha, os montados e a fauna
No seu conjunto, as áreas de montado possuem uma diversidade faunística muito elevada, nele residindo a maioria dos efectivos nacionais de diversas espécies de vertebrados. O Eng Nuno Onofre, investigador da EFN, introduz o tema.
Os ecossistemas florestais, por mais intensiva que seja a sua condução, são dinâmicos no espaço e no tempo. As grandes diferenças residem no compasso ou densidade do arvoredo, na sua composição em espécies no estrato arbóreo, na sua rotação ou revolução e, também ou em suma, na sua condução ou práticas culturais, que controlam o sub-bosque, uniformizam o arvoredo ou eliminam as árvores mortas e doentes.
No caso dos ecossistemas de sobreiro, e aqui há que referir que eles não se resumem apenas aos conduzidos em montado, o dinamismo da estrutura arbórea é lento, tão lento como o de um outro carvalho qualquer.
Os sobreiros, tal como as azinheiras, são no entanto uns carvalhos especiais, porque crescem em regiões de clima tipicamente mediterrânico, ameno no Inverno e quente e seco no Verão, e porque têm folha persistente. E são especiais ainda porque, para além da madeira, dão um produto que ainda tem ou teve uma importância económica suficientemente grande para que no seu lugar não estejam, desde há muito, culturas agrícolas ou plantações florestais de outro tipo. É sabido que no caso do sobreiro este produto é a cortiça e no caso da azinheira, a bolota.
Não é fácil reunir condições para plantar sobreiros e muito menos azinheiras. A estrutura da propriedade é uma ajuda, pois uma dimensão relativamente grande permite deixar de lado, sem grande transtorno, um bom pedaço de terra para os novos sobreiros poderem crescer durante uns...30-40 anos até poderem começar a ser explorados economicamente. Mas hoje em dia, um subsídio do Estado ou da Comunidade Europeia, à instalação e ao compasso de espera, também ajuda.
Sim, porque as condições sócio-económicas da região de excelência do sobreiro e da azinheira já não são o que eram há uns 100-150 anos. Ou seja, ou temos subsídios, logo vontade governamental e comunitária e boa vontade dos agricultores ou, então, adeus montados e sobreirais. E isto enquanto a rolha, e por arrasto a cortiça, valer alguma coisa. A bolota, essa, já conheceu bem melhores dias e com ela os montados de azinho. Quer isto dizer, que ou se valoriza e conserva o que se tem, e se repõe o que se perde, ou áreas destas, de centenas de milhares de hectares de folhosas de crescimento lento, nunca mais se têm. Costuma dizer-se que oportunidades não há muitas ou, então, e o que é mais grave, nunca mais se repetem.
A cortiça tem valor por que a rolha feita de ela própria tapa o vinho, e tapa bem. Mas parece que nos nossos dias tal não chega, pois pesa a ameaça do "plástico" e dos interesses que estão por detrás dele, que como é típico destas guerras, fazem uso da desinformação. Claro que o que interessa é o que está lá dentro, a sua qualidade. A rolha, essa, apenas serve para não deixar estragar ou fugir o precioso líquido e a justificação da tradição ou de que "é bem" beber um vinho rolhado com cortiça não resiste durante muito tempo, face à sociedade consumista e à grande agressividade comercial dos nossos dias. As tradições tendem a perder-se ou a mudar com o tempo, a menos que se esteja fechado no espaço, no tempo e à tecnologia.
No entretanto, outros costumes ganham-se. O consumidor da Europa é cada vez mais exigente e, porque tendo dinheiro, acesso à informação e, algum, tempo para pensar, começa a ser cada vez mais sensível ao consumo de produtos biológicos, às questões do ambiente e da conservação da natureza. Ora bem, é bem provável, no que se refere ao futuro da cortiça e às suas rolhas, que a chave esteja em boa parte aí, tal como os nossos amigos da Royal Society for Bird Protection (RSPB) se lembraram. Os consumidores ingleses, que têm um peso fundamental no consumo de vinho a nível mundial, bem como os franceses e alemães, poderão ser mais sensíveis à rolha de cortiça se forem sensibilizados para o que está a montante da rolha, da cortiça e do sobreiro, ou seja para os ecossistemas de sobreiro no seu todo e, nomeadamente, para o valor das suas biocenoses. E, com efeito, este passo poderá ajudar a travar o aumento da utilização de outro tipo de vedantes no vinho engarrafado.
Para isso, para além de outro tipo de acções, há que informar sobre a importância ecológica e o valor natural dos ecossistemas de sobro e sobre os riscos de degradação e desaparecimento destes, se persistir o aumento da taxa de substituição da rolha de cortiça por vedantes de plástico e afins. E uma coisa nos vale: os ingleses e outros povos da Europa do Norte e Central estão bem mais sensibilizados para estas questões da qualidade ambiental e da conservação da natureza do que nós. Logo, há que dar lustro às nossas pratas.
Não temos grandes extensões de floresta autóctone no país. Há umas manchas de carvalhais caducifólios no Centro e Norte, mas regra geral são povoamentos jovens. O resto, onde domina arvoredo adulto e existe uma estrutura de bosque complexa, é escasso, vestigial e de reduzida dimensão. Sobram as áreas de azinheira e sobreiro.
Grosso modo, mais de 400 e de 700 milhares de hectares, respectivamente. É uma área muito grande, apesar de tudo. Sabe-se que dos povoamentos em estrutura de bosque - aquilo que poderíamos chamar de verdadeiros azinhais e sobreirais -, pouco resta e que apenas se conservaram por estarem nos barrancos dos rios e das serras. Também, como que abandonadas nas serras, existem ainda umas manchas razoáveis de matagal, arborizado aqui e ali com uns sobreiros e azinheiras dispersos. E sobram, finalmente os montados, essas grandes áreas de sobreiro e azinheira artificialmente criados pelo agricultor e que de bosque apenas representam uma muito pálida imagem sua, pois em regra o arvoredo resume-se a uma única espécie, entre algumas que antes compunham este andar de vegetação. E isto sem falar das podas e arreias, que contribuem ainda mais para a esta desfiguração.
Por outro lado, o seu sob-coberto é regularmente alterado, por controle do sub-bosque, por cultivo de uma seara, de uma forragem ou de uma pastagem. Mas, é curioso: apesar de toda esta artificialização e simplificação da estrutura vertical, a riqueza faunística dos montados de sobro é considerável. Ou, melhor dizendo, a diversidade é considerável. E é-o por várias razões, nomeadamente porque no espaço horizontal a estrutura do montado varia muito, conjugando-se e interpolando-se áreas de diferente densidade de arvoredo e de diferente condição do sob-coberto (pastagem, cultura ou mato mais ou menos desenvolvido). Naturalmente que alguns pinheiros à mistura também ajudam, pelo menos os que já lá estão, dispersos ou formando pequenos bosquetes. Estas "nuances" na paisagem do montado de sobro são importantíssimas para a fauna e a para a avifauna em particular, pois a algumas dezenas ou a poucas centenas de metros podem ocorrer outras espécies, fruto de diferentes condições de micro-habitat ou de novos nichos oferecidos e daí os reflexos positivos na chamada diversidade Beta**.
Por exemplo, nas condições onde o arvoredo abre um pouco mais ou existe uma clareira de maior ou menor dimensão e nas quais o revestimento herbáceo é preponderante, podem aparecer espécies de meios abertos e das culturas agrícolas e pousios, como o Peneireiro-cinzento (Elanus caeruleus)*, o Trigueirão (Miliaria calandra), o Cartaxo (Saxicola torquata) ou, mais raramente, o Alcaravão (Burhinus oedicnemus)*, entre outras. Ao mesmo tempo, em zonas adjacentes onde o mato é deixado crescer até ao 3-5 anos e que apenas a esforço ultrapassa 1 metro, outras espécies ocorrem e substituem muitas das primeiras, como a Carriça (Troglodytes troglodytes) e a Toutinegra-dos-valados (Sylvia melanocephala). Caso os matos sejam ainda mais fortes e diversificados, p. ex. em áreas de sobreiro onde a intervenção no sub-bosque é mais esporádica, outras espécies de nicho arbustivo fazem a sua aparência, como o Rouxinol-do-mato (Cercotrichas galactotes)*, o Rouxinol (Luscinia megarhynchos) ou a Felosa-poliglota (Hippolais polyglotta).
Contudo, a diversidade dos montados não se deve exclusivamente à heterogeneidade horizontal, mas também às características do próprio arvoredo. Por um lado, tratam-se de carvalhos autóctones que possuem uma fauna invertebrada abundante e diversificada. Por outro, a sua estrutura é frequentemente jardinada e composta em grande parte por árvores adultas e maduras, as quais, fruto da sua própria natureza (folhosas) e das feridas provocadas principalmente pelas podas de formação, estão repletas de cavidades naturais. Este conjunto de condições são altamente favoráveis à existência de grande número de espécies cavernícolas***, desde um vasto leque de espécies de aves, como corujas (Coruja-do-mato [Strix aluco] e Coruja-das-torres [Tyto alba], pica-paus (Peto-real [Picus viridis], Pica-pau-malhado [Dendrocopos major], Pica-pau-galego [D. minor]*, Torcicolo [Jynx torquilla]*), chapins (Chapim-real [Parus major], Chapim-azul [P. caeruleus], Chapim-de-poupa [P. cristatus], trepadeiras (Trepadeira-azul [Sitta europaea], Trepadeira [Certhia brachydactyla] e outras ainda como o Rabirruivo-de-testa-branca [Phoenicurus phoenicurus], Pardal-francês (Petronia petronia]* e Estorninho-preto (Sturnus unicolor), aos répteis, como o Sardão [Lacerta lepida], Lagartixa-do-mato (Psammodromus algirus), Lagartixa-de-dedos-denteados (Acanthodactylus erythrurus), Cobra-rateira (Malpolon monspessulanus), Cobra-de-escada (Elaphe scalaris), entre muitas outras.
Quase todas estas espécies são comuns no montado e algumas particularmente abundantes (p.ex. a coruja-do-mato, o chapim-azul, as trepadeiras, as lagartixas e o sardão). Do mesmo modo, são comuns e por vezes muito abundantes, as espécies que fazem uso do solo e da vegetação imediatamente acima deste, apesar de poderem reproduzir-se no arvoredo, como p.ex. o Tentilhão [Fringilla coelebs] e o Milheirinha [Serinus serinus]). Determinados anfíbios como o Sapo-corredor (Bufo calamita), em particular, Sapo-de-unha-negra (Pelobates cultripes), sapos-parteiros (Alytes spp.) e as relas (Hyla spp.), entre outros, poderão ser localmente comuns, dependendo das condições do solo e humidade, da formação de charcos temporários, etc.
Outras razões concorrentes para a diversidade faunística dos montados, têm a ver com a existência de extensas manchas praticamente contínuas de sobro (que nalguns casos atingem milhares ou dezenas de milhares de hectares), bem como o carácter extensivo das intervenções agro-florestais em grande parte desta área. Embora estes aspectos estejam pouco ou nada estudados, nomeadamente o efeito da extensão/fragmentação das áreas de montado, eles terão certamente muita importância para algumas espécies, entre as quais predadores ou animais de médio a grande porte. Por exemplo, apesar da sua adaptabilidade e tolerância às condições e às práticas agro-silvo-pastoris mais comuns do montado, muitas aves de rapina, de que poderemos dar como exemplos a Águia-cobreira (Circaetus gallicus)*, Águia-calçada (Hieraaetus pennatus) ou o Bútio-vespeiro (Pernis apivorus)*, requerem condições de habitat que lhes garanta uma dissimulação e tranquilidade mínimas durante a reprodução.
Por outro lado, os montados possuem ainda uma característica especial que favorece estas espécies: é que para além de disponibilizarem abundante arvoredo para suporte dos ninhos, permitem que as aves de rapina desenvolvam as suas actividades de caça igualmente "dentro" do próprio montado, devido à sua estrutura aberta, por um lado, e à diversidade e abundância de espécies-presa que acolhem, por outro. Ou seja, ao contrário do que acontece com as suas “congéneres” nidificantes em formações florestais típicas e densas, não necessitam de se deslocar amiúde até às orlas e aos terrenos limpos para procurarem alimento.
Este é, pois, um retrato, em traços muito gerais, das comunidades de vertebrados selvagens dos montados de sobro e do conjunto de razões que está na origem desta assinalável diversidade biológica e que se traduz pela ocorrência, ao longo das diferentes facies do montado, em mais de 60 espécies de aves nidificantes (das quais mais de 40 são Passeriformes), mais de 20 de mamíferos, e outras tantas espécies de répteis e anfíbios***. É por vezes referido, que a variedade e a abundância dos predadores de topo numa paisagem reflectem a estrutura da mesma e das comunidades de presa e que, por seu turno, as aves de rapina, por serem mais visíveis, são por estas razões bons indicadores. Não será por isso de estranhar, que em alguns montados de planície possam ocorrer 9, 10 ou mais espécies de aves de rapina nidificantes, com densidades globais de 60-80 casais em 100 Km2.
A maioria das espécies que aparece nos montados de planície não está catalogada como ameaçada no Livro Vermelho dos Vertebrados, mas um bom número delas, estando-o de facto, não se encontram em situação verdadeiramente crítica (ver nota*).
Muitas destas últimas espécies foram assim catalogadas por dois conjuntos de razões: por um lado como medida de precaução, porque não se dispunha de informação suficiente na altura; por outro lado, porque são pouco abundantes ou possuem áreas de distribuição relativamente restritas ou com grandes descontinuidades no país. Estas últimas considerações são no entanto de reter, pois tratando-se de espécies comuns no montado de sobro, tal pode indicar que elas têm neste habitat populações com importância a nível nacional. Note-se também, que inclusive para outras espécies catalogadas como Não-ameaçadas, a situação poderá ser semelhante, tal a densidade com que ocorrem nos povoamentos de sobro, sendo um caso paradigmático a Águia-calçada.
É certo que, salvo as referências acima feitas, as espécies particularmente sensíveis ao Homem e particularmente raras e ameaçadas só pontualmente aparecem nos montados de planície, tendo algumas inclusive já se extinguido de todo, como a Águia-imperial (Aquila adalberti). Estas também aqui são realmente raras, o que não admira, pois apesar de tudo estes montados estão sujeitos a alguma perturbação ou intervenção periódicas (maneio de gado, roças de mato, podas, caça, etc). Por estes factos as espécies efectivamente raras, esquivas ou escorraçadas, como a Águia-de-Bonelli (Hieraaetus fasciatus)*, Cegonha-preta (Ciconia nigra)*, Gato-bravo (Felis silvestris)* ou Lince-ibérico (Lynx pardinus)*, já só estão praticamente restritas aos montados, sobreirais e matagais dos barrancos acidentados das serras e dos rios.
Em suma, estamos perante um sistema produtivo de elevado interesse, cuja diversidade biológica é ao mesmo tempo tão importante (por inerência das suas características intrínsecas e da vasta área de distribuição dos povoamentos de sobreiro), como tão vulnerável, por estar tão dependente do futuro da rolha de cortiça. Sem dúvida que uma importante achega para a resolução do problema pode passar pela difusão da preposição "tão pequena, mas tão importante para a biodiversidade". Contudo, o reforço e o desenvolvimento de novas aplicações para a cortiça é crucial para o futuro dos montados de sobro.
* Espécies constantes no Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal. Vol. I - Mamíferos, Aves, Répteis e Anfíbios. Cabral et al. SNPRCN. Lisboa. 1990, que na sua maioria estão catalogadas com estatuto de Indeterminado (I) ou Insuficientemente Conhecido (K).
** Definida, grosso modo, como a variação da diversidade biológica ao nível da paisagem, ao longo de gradiente de habitats.
*** Espécies que usam cavidades naturais para se reproduzir e como abrigo.
Relativamente a este aspecto, espera-se para breve a publicação dos primeiros resultados de dois projectos de investigação (Projecto PAMAF nº 8151 ”Ensaio metodológico para a identificação e monitorização de indicadores de biodiversidade em montados de sobro e azinho ao nível da unidade de gestão”; Projecto PAMAF Medida 4 [Organização e divulgação], Acção 4 [Estudos estratégicos] nº 97095552.2), cuja amostragem cobriu um leque bastante vasto de situações de montado de sobro, entre outros ecossistemas florestais.
Nuno Onofre, Estação Florestal Nacional
in Naturlink
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