Excesso de vaidade torna crianças fúteis
"Escolher o melhor vestido do armário, passar batôn nos lábios, esticar e ondular as pestanas com rímel, pintar as unhas, esticar o cabelo com chapas de alisamento ou colocar os pés em cima de uns saltos altos não são comportamentos a estranhar entre as mulheres. Mas os especialistas chamam a atenção para as novas adeptas destes rituais de beleza: há cada vez mais crianças a repetirem as rotinas de estética das mulheres adultas.
Fotografias de Suri Cruise - a filha de três anos de Tom Cruise e Katie Holmes - a andar pela rua, de mão dada com a mãe, num dia de chuva, calçada com uns sapatos de salto de mais de um centímetro fizeram soar o alarme. Katie Holmes disse, em sua defesa: "Ela, como todas as crianças, adora os meus saltos altos." Mas a comunidade médica dos EUA acusa Tom e Katie de negligência. Especialistas portugueses também criticam. Saltos altos na rua, nunca. "São contraproducentes para um bom desenvolvimento da postura e da maturação da coluna", afirma o pediatra Mário Cordeiro. Além disso, ao permitirem este tipo de comportamento, os pais estão a transpor a fantasia para a realidade e a dizer à criança que "ela realmente é adulta".
A vaidade em dose certa na infância "é saudável e recomenda-se", brinca a psicóloga infantil Rita Jonet. "É bom que uma criança goste de si e se cuide." Mas se a vaidade se transforma num exagero há mais riscos para o seu desenvolvimento equilibrado. Rita Jonet exemplifica com um conto infantil de Sophia de Mello Breyner: "Se o valor da imagem começa a ser exagerado, a história passa a ser como a da Fada Oriana, que deixa de cuidar da sua floresta porque fica encantada com a sua imagem no lago."
Os pais devem conseguir discernir o momento em que a auto-estima dos filhos se transforma em narcisismo. É normal que as crianças, sobretudo entre os três e os quatro anos, cultivem os jogos simbólicos do faz de conta e façam a sua afirmação de género - isso inclui o querer imitar o pai a fazer a barba, no caso do rapaz, ou querer experimentar os sapatos de salto alto da mãe e gostar de vestidos, ganchos, bandeletes e colares, no caso da rapariga. Na opinião do pediatra Mário Cordeiro, "sem cair no exagero, é bom essa afirmação orgulhosa do 'sou mulher". É prejudicial quando se torna obsessivo ou quando o que conta não é o adorno mas a marca ou o preço".
A psicóloga Rita Jonet lembra ainda que muitas vezes estes comportamentos são mais uma chamada de atenção do que de vaidade. "Estas crianças acham que isso é uma promoção. Estão a querer saltar etapas porque acham que vão olhar mais para elas se forem adultas."
Se a criança passa horas em frente ao espelho, deixa sistematicamente de brincar para pintar as unhas, ou começa a exigir esta ou aquela roupa antes de sair é hora de os pais lhes porem um travão.
"Quando a necessidade de uma criança impor sempre os seus teatros começa a interferir na vida de uma família inteira esse é o momento certo para os pais dizerem não", recomenda Rita Jonet. Cabe aos pais estarem atentos, serem vigilantes e colocarem barreiras ao culto das aparências. "O preocupante é quando os pais não são uma verdadeira entidade reguladora e são permissivos em excesso", lembra o psicólogo Eduardo Sá. "O maior problema" - complementa Rita Jonet - é quando a vaidade é construída e mantida "pelo egoísmo dos adultos": "Há cada vez mais uma tendência para os pais e avós acharem muita graça a crianças com jeitos de adultos - dos gestos ao uso de palavra caras - porque gostamos delas à nossa imagem e semelhança."
E quanto mais ausentes são os pais, maior a tendência para se sentirem desautorizados a barrar os excessos dos filhos. "Pais com sentimento de culpa têm maiores dificuldades em dizer não", afirma a psicóloga.
Os especialistas não têm dúvidas: para um desenvolvimento saudável as crianças não devem crescer antes de tempo. Vaidade a mais pode esvaziar a infância e transformar essas crianças em adultos fúteis e anti-sociais, pessoas que, para o pediatra Mário Cordeiro, "cultivarão as aparências e o faz de conta, para lá da idade em que é lícito fazerem-no. Além de superficiais, podem tornar-se muito agressivas". O jogo da vaidade "é perigoso e não compensa", diz Eduardo Sá. Essas crianças terão maiores probabilidades de se tornarem "adultos avessos e solitários". A menos que a criança seja muito resiliente, o mais comum é ficar "muito virada para dentro".
In jornal I
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