segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Regresso à natureza. O seu filho vai ser mais saudável se brincar ao ar livre
O medo e a tecnologia mataram as brincadeiras na praceta e as subidas às árvores. E também criaram crianças mais obesas, agressivas e descontroladas. A terapia verde está a ganhar adeptos - muitos deles cientistas


Em 2003, um estudo em 109 escolas primárias do Reino Unido concluiu que as crianças de oito anos conseguiam identificar 83% de 150 personagens dos desenhos animados japoneses Pokémon mas não reconheciam a fotografia de um escaravelho, de um veado ou de um carvalho. "O nosso estudo tem duas mensagens: a primeira é que as crianças têm uma capacidade enorme para aprender acerca de criaturas, sejam elas naturais sejam artificias. A segunda é que parece que os defensores da natureza estão a sair-se pior que os criadores do Pokémon", provocaram os investigadores em entrevista ao jornal britânico "The Independent".
Na última década a investigação do impacto da natureza no desenvolvimento ganhou novo fôlego, com dezenas de estudos a tentarem mostrar o papel protector da natureza na saúde, mas também na fortalecimento de competências como a criatividade ou a concentração, ou até na diminuição da taxa de criminalidade.
Mas estas lições científicas só aos poucos vão entrando na rotina familiar. No Reino Unido, uma sondagem do canal Eden, em que participaram 2 mil crianças, revela que 64% já só brincam fora de casa uma vez por semana, e pelo menos um quinto nunca subiu a uma árvore. Em Portugal sabe-se que ver televisão é já a principal actividade das cinco horas diárias de lazer que as crianças têm em média, segundo os últimos dados do INE.
Uma tarde no Estádio Nacional do Jamor, em tempo de férias e dia de semana, mostra que há quem faça questão de levar os filhos para espaços verdes. Os estudos, contudo, revelam que estas actividades não têm o mesmo impacto no desenvolvimento das crianças que acampar, fazer caminhadas de montanha ou pescar. Das cinco crianças com quem falámos, só uma acampou uma vez este Verão. Outra tinha experimentado trepar a uma árvore, com ajuda. Ficar a brincar na rua está fora de questão e a idade com que os pais pensam deixá-los ir pela primeira vez à aventura também ainda não está definida.
terapia verde Entre os estudos publicados na última década, Frances Kuo, da Universidade do Illinois, nos Estados Unidos, é uma das autoras que mais se destacam. É directora do Laboratório de Paisagem e Saúde Humana, de onde saíram conclusões como, em 2001, a associação entre a prevalência de criminalidade num bairro de Chicago e o número de árvores que cada morador tem por perto. Concretizando: nas zonas próximas de espaços verdes, encontrou uma taxa de criminalidade 7% mais baixa.
Já no ano passado, a investigadora publicou um novo trabalho em que demonstrava que as crianças diagnosticadas com défice de atenção e hiperactividade têm menos sintomas depois de actividades em ambientes frescos e verdes.
Entre os animais selvagens, as mudanças no habitat natural resultaram num aumento da agressividade e no colapso de hierarquias sociais - sinais de alerta, afirma Frances Kuo. "Agora que as sociedades se tornaram mais urbanas, enquanto cientistas podemos olhar para os seres humanos da mesma forma que os investigadores do comportamento animal analisavam as mudanças no habitat dos animais selvagens", defende.
Contudo, acrescenta, não há provas definitivas de que a natureza seja imprescindível. "Quando me perguntam, digo que enquanto cientista ainda não posso responder que sim. Mas, enquanto mãe que conhece a literatura científica, tenho de dizê-lo", afirma num comunicado da universidade.
obesidade, mas não só Dos estudos saem nomes elaborados para doenças modernas. Peter Kahn, da Universidade de Washington, é autor de um deles: "amnésia geracional do ambiente". A ideia é que as experiências que as gerações mais velhas tiveram na natureza durante a infância servem de referência para medir o afastamento ao longo da vida adulta. "O problema é que, a cada nova geração, a referência nasce mais degradada, mas é transmitida como a base normal", sustenta. "Adaptamo-nos mas com imenso custo psicológico. Enquanto indivíduos e sociedade podemos e devemos fazer escolhas diferentes."
Richard Louv, autor do best seller "Last Child in the Woods", tem sido um dos grandes mentores do regresso à natureza nos Estados Unidos, com a organização Children & Nature Network (C&NN). Foi criada para cumprir a missão do livro publicado em 2005: salvar as crianças da "desordem do défice de natureza", como lhe chamou. "Criei a designação para servir de descrição dos custos humanos da alienação da natureza, não como diagnóstico médico", diz ao i.
Os sintomas notam-se cada vez mais, adianta. "À medida que as crianças vão passando menos tempo em ambientes naturais, os seus sentidos vão ficando mais diminuídos e os problemas de obesidade vão aumentando. A infância sobreorganizada e a desvalorização da brincadeira destruturada têm implicações na capacidade de autodomínio."
Para a epidemia da obesidade - em Portugal 30% das crianças têm excesso de peso - há dados concretos: um estudo australiano publicado em 2005 no "International Journal of Obesity" indica que cada hora extra que as raparigas passam fora de casa no Inverno corresponde a 26,5 minutos de exercício físico moderado a forte, 21 minutos no caso dos rapazes.
Um dos factores a combater, afirma Louv, é o medo galopante de deixar as crianças brincarem na rua. A prova está nos números, sustenta. Em 2005, as taxas de crimes violentos contra crianças nos EUA caíram para o número mais baixo desde 1975 e o principal problema - de acordo com o índice de bem-estar infantil da Universidade Duke - passou a ser o maior aumento da prevalência de obesidade registado nos últimos 30 anos e um abrandamento na diminuição da mortalidade infantil. "O medo é real, mas é importante enfrentá-lo, perceber o contexto e medir o risco em termos comparativos. A verdade é que o medo exagerado está a ter um preço", sublinha.
solução Uma das soluções de Louv, com várias dicas no site da C&NN, é a criação de "clubes da natureza" entre famílias, para criar escalas de vigilância das brincadeiras consoante a disponibilidade dos pais. Para o especialista, há um conselho do popular psicólogo familiar John Rosemon que faz cada vez mais sentido: "É preciso ensinar as crianças a ter cuidado com os comportamentos, mais até do que com os estranhos."

In Jornal I

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