De Alcoutim ao antigo porto mineiro de Premedeiros, em menos de uma hora se descobre toda a serenidade e beleza do Guadiana. Rio acima, rio abaixo, a paisagem revela-nos um paraíso animal, postos de vigia de contrabando e até o barco de uma antiga estrela rock que encontrou refúgio por estas margens.
Dos mais de 800 quilómetros que compõem o percurso total do Guadiana só os últimos 68 são navegáveis (já considerando até Mértola) por isso é um verdadeiro privilégio poder descobri-los de barco, seja na sua totalidade ou, como neste caso, apenas em parte.
Se o tempo disponível não for muito, siga o nosso exemplo e faça de automóvel o caminho entre a foz (em Vila Real de Santo António) e Alcoutim porque as vistas também compensam, sobretudo a partir da Foz de Odeleite, ainda no concelho de Castro Marim, altura em que a estrada (municipal 507) segue quase de braço dado com o rio.
Uma vez chegados à vila é altura de procurar o Guadiana River Hotel, onde já está ancorada a embarcação da empresa Inland Adventures, que nos dará a conhecer um dos muitos passeios que organiza na região. O nosso terá como destino o antigo porto mineiro de Premedeiros, situado a cerca de cinco quilómetros, por isso em pouco mais de 45 minutos se vai e se volta, mas com todo o tempo do mundo para apreciarmos uma das mais surpreendentes e intocadas paisagens ibéricas.
So far away… no Guadiana
Levantadas as amarras, rapidamente deixamos para trás o casario de Alcoutim, que dá lugar à vegetação ribeirinha e, lá no alto de um monte, ao castelo velho, também conhecido por castro de Santa Bárbara. De tão sobranceiro e degradado, passa quase despercebido ao olhar mas em tempos idos chegou a ser uma das mais importantes fortificações islâmicas do Algarve.
Pelo caminho vamos encontrando inúmeros barcos fundeados, quase todos pertencentes a estrangeiros que se apaixonaram pela região e que aqui decidem passar longas temporadas, se não mesmo o resto da vida. É o caso de um veleiro sueco, de um barco de pesca escocês ou de um pesqueiro do mar do norte que vimos logo no início do passeio, antes de passarmos pela ribeira da Madrinha (do lado espanhol), um dos quatro pequenos afluentes do Guadiana.
Mais à frente, o nosso cicerone chama-nos também a atenção para duas embarcações aparentemente anónimas, mas com histórias curiosas: “o primeiro, aquele barquinho verde, é de um ex-músico dos Dire Straits que vive discretamente naquela casa em Espanha, enquanto o veleiro pertence a um argumentista de filmes de Hollywood que ainda agora passou por nós”, revela-nos Luís Borges, o proprietário da Inland Adventures, que conhece quase de olhos fechados cada curva e contracurva do rio.
Contrabando e minério
Num abrir e fechar de olhos a paisagem volta a estar salpicada por duas ou três casas, com destaque para o antigo posto da guarda-fiscal (hoje habitação particular), um dos 36 existentes deste Mértola até Castro Marim, que serviam para vigiar a fronteira e, sobretudo, para evitar o contrabando entre as duas margens. Esta atividade ilícita acontecia preferencialmente em dias de lua nova (com menos visibilidade) e por homens que, muitas vezes, nem sequer sabiam nadar, fazendo a travessia na água mas agarrados à trouxa.
Rapidamente chegamos à zona do antigo porto de Premedeiros, que servia de cais às minas de Cortes Pereira, desativadas há várias décadas depois de perderem importância face a outras vizinhas, como as de São Domingos (Mértola) ou de La Laja, a menos de um quilómetro dali mas já do lado espanhol.
Seria por lá que passaríamos se continuássemos a subir o rio, navegável até ao Mértola (nesse caso o preço da viagem passa dos 10 para os 35 euros ou 25 até ao Pomarão) e com águas em perfeitas condições para se tomar um refrescante banho. Estivéssemos nós em tempo de calor e também não escaparíamos ao mergulho da praxe.
Cenário verde antes das irmãs brancas
É tempo, no entanto, de voltar para trás e prestar agora atenção redobrada à Natureza que rodeia o rio. Milhafres, garças brancas, patos selvagens e outras aves passeiam-se nas alturas ou junto à margem, enquanto debaixo de água não faltam espécies de peixes, como achigãs, pargos, bogas e barbos, além de enguias e lampreias, estas na época correspondente. E convém não esquecer também a tainha (ou muge) muito utilizada na confecção das afamadas sopas do rio que se fazem por estas paragens.
À medida que nos aproximamos novamente de Alcoutim passamos a encontrar cada vez mais hortas (ainda são um meio de subsistência local) mas os densos canaviais que antes serviam de matéria-prima às artes da cestaria há muito deixaram de ser cortados. Já as oliveiras, figueiras, amendoeiras e outras árvores de fruto continuam a compor ambas as margens.
É já na última curva do rio antes da vila que o cenário se engrandece ainda mais, graças a um conjunto de montes altivos e ondulantes (feitos essencialmente de xisto) que compõem a paisagem em terras de Espanha. Por estarmos no Inverno o verde é a cor dominante, mas lá mais para a Primavera começará a ganhar tons amarelados e, já no Verão, ficará quase totalmente castanha. Ora aí está outra razão para se voltar mais tarde ao rio e perceber quão camaleónico ele pode ser.
Antes de terminarmos o passeio impõe-se ainda uma passagem pelas margens das alvas povoações de Alcoutim e Sanlúcar, a fazerem lembrar duas irmãs gémeas, em tempos de costas voltadas mas agora mais cúmplices que nunca. E ao meio o mesmo rio de sempre para separar as águas…
Nelson Jerónimo Rodrigues (2012-01-30),
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