Buçaco - O bosque encantado
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Os monges chegaram em 1628 e, com eles, a mata, que já era densa, ganhou espécies exóticas. E as árvores cresceram, com a ajuda de uma bula papal que excomungava quem as cortasse. Mais tarde, o convento dos carmelitas deu lugar a um palácio. Religioso e romântico, que o diga o rei D. Manuel II, o Buçaco precisa hoje de uma séria intervenção. Recuperar a via sacra e os trilhos que esconde são prioridades.
Sábado, descobrimos depois, não era o dia certo para ouvir o zangarreio celestial da Mata do Buçaco e, muito menos, para recuar algumas centenas de anos no tempo e vestir a pele de um monge carmelita descalço, tentando imaginar como seria orar, laborar e penar naquele bosque encantado. Havia excursões e dançava-se o vira minhoto ao som do acordeão, ao mesmo tempo que uma das duas guias que acompanhavam a visita de um grupo de juízes e funcionários judiciais procurava explicar o carácter religioso da mata e lamentava a proliferação de plantas infestantes, como as acácias. "Isto já começa a ser também uma infestante", comentou uma das participantes do grupo, referindo-se à desgarrada minhota que um homem, com uma concertina, e duas mulheres tinham acabado de montar mal desceram do autocarro.
Estava tudo errado: o lugar, a entrada da Cruz Alta, o ponto mais panorâmico da Mata do Buçaco, com 547 metros de altitude, nasceu como a etapa final do calvário, não como início de festa. Todos iam descer, mas o percurso foi feito para ser a subir, com devoção e carregando nas costas a experiência de Jesus Cristo. Chegar ao topo, com a sua panorâmica de 360 graus, é o prémio que se ganha hoje. Antes, era a esperança do reencontro com o divino através da penitência.
Para a cumprirem com rigor, os carmelitas descalços construíram no Buçaco uma réplica perfeita da via sacra de Jerusalém, com os seis Passos da Prisão e os 14 da Paixão de Cristo."É a única existente no mundo", lembra António Jorge Franco, presidente da fundação que gere a Mata Nacional do Buçaco há um ano. Não se sabe como foram os monges capazes de respeitar religiosamente o percurso, as formas e as medidas da via sacra original. "Segundo alguns historiadores, é possível que um dos monges tenha estado antes em Israel e trazido de lá toda a informação necessária", diz o mesmo responsável.
O caminho de pedra rasga as sombras perfumadas do arvoredo e a encosta íngreme ao longo de 3,5 quilómetros que, em penitência, demoram cerca de quatro horas a percorrer. Árvores gigantescas filtram a luz solar, lançando as pequenas capelas numa semiobscuridade que acentua ainda mais a dimensão espiritual do caminho. As cenas bíblicas vão sendo desfiadas uma a uma e revividas em cada capela pelo realismo das esculturas de terracota criadas pelo escultor e ceramista Costa Motta (sobrinho), entre 1908 e 1916, para substituir as originais, entretanto destruídas. Um dos elementos mais impressionantes é a alegoria arquitectónica da Varanda de Pilatos, o Pretório, onde Cristo foi julgado e condenado. Daí para a frente, o caminho sobe cada vez mais, recriando o sofrimento de Cristo até à crucificação e culminando na Capela do Calvário. O percurso continua depois em escadas de pedra tosca até à cruz Cruz Alta.
180 mil réis pela mata
Os carmelitas descalços, com o apoio dos bispos de Coimbra e de Viseu, demoraram mais de meio século a erguer a via sacra tal como hoje a conhecemos. Se há algo que distingue estes religiosos, é a paciência. A paciência de viver uma vida inteira contemplando, orando e trabalhando na mais profunda das reclusões. O Bucaço foi o seu deserto em Portugal, o único, por sinal.
A mata, hoje com 105 hectares, foi-lhes cedida, em troca de 180 mil réis, em 1626, pelo bispo de Coimbra, D. João Manoel, depois de o padre geral da ordem ter visitado e aprovado o lugar de clausura mais ou menos nestes termos: "Aqui é vontade de Deus que se funde; murem este sítio, que nele têm o melhor deserto da ordem. Porque se agora, inculto, rude e tosco, é o que admiramos, cultivado será um paraíso terreal."
Os primeiros três frades começaram por se instalar no Luso em 29 de Junho de 1628, trazendo cada um "um cobertor para a mesa e dez cruzados para o começo da obra". No início de Agosto, juntamente com mais três carmelitas, instalaram-se de vez no Buçaco, iniciando de imediato a construção do mosteiro, onde, depois de pronto, passavam a maior parte do tempo.
Pelo menos duas vezes por ano, na Páscoa e no Natal, refugiavam-se numa das inúmeras ermidas que foram erguendo ao longo da mata, para viverem um período de absoluto isolamento. As ermidas eram espartanas, com uma sala de orações, uma cela, uma cozinha e pouco mais. O pé direito era baixo e a entrada muito estreita. "As pessoas imaginam os monges carmelitas descalços como sendo baixos e gordinhos, mas não. Por serem vegetarianos, eram baixinhos e magrinhos", ia explicando a guia Patrícia Duarte ao grupo de funcionários judiciais.
Acompanhando outra parte do mesmo grupo, a engenheira florestal Anabela Bemhaja focava-se nos segredos botânicos da Mata do Buçaco, desfiando os nomes populares e científicos de algumas das árvores e plantas que ia encontrando pelo caminho. "Aquela árvore retorcida é o aderno, a Phillyrea latifilia. Esta aqui é carvalho-alvarinho, o Quercus robur. Lembram-se do vinho e nunca mais se esquecem dela." E por aí adiante.
Estas espécies fazem parte da chamada "floresta climácica do Buçaco", uma representação da floresta primitiva nacional. Muitas delas têm centenas de anos. Ao todo, existem no Buçaco 258 tipos diferentes de árvores, 89 das quais consideradas notáveis, pela sua raridade e importância.
Devido ao microclima do lugar, o arvoredo já era exuberante e espesso, quando os carmelitas chegaram ao Buçaco, mas foi com eles que a mata ganhou o perfil e a diversidade actual, através da introdução de espécies exóticas provenientes dos vários continentes. Protegidos por uma bula do papa Urbano VIII que ameaçava com a excomunhão quem se atrevesse a cortar árvores no Buçaco, os frades não só conservaram o que já existia, como foram enriquecendo o bosque, plantando freixos do México, bétulas da Noruega, sequóias gigantes da América do Norte, criptomérias do Japão, nogueiras-pretas, araucárias e choupos do Canadá, eucaliptos da Austrália, cedros dos Himalaias e ciprestes da América Central, entre muitas outras espécies.
Os carmelitas procuravam a diversidade, tentando talvez recriar o paraíso, mas cultivavam um interesse especial pelos ciprestes e cedros, dada a ligação destas árvores a textos bíblicos. Sobretudo os primeiros, encontraram no Buçaco um habitat perfeito, ao ponto de terem dado origem a uma nova designação científica, o Cupressus lusitanica, vulgarmente conhecido como cedro-do-buçaco, apesar de se tratar de um cipreste.
O mais antigo que se conhece em Portugal situa-se junto à Capela de S. José e transformou-se no símbolo da Mata do Buçaco. Uma placa indica que foi plantando em 1648, mas é provável que seja ainda mais antigo. Tem cerca de 40 metros de altura e está rodeado por um gradeamento metálico, "o que parece desnecessário e, além de inestético, constitui um objecto de poluição visual", insurgiu-se um dia o botânico Jorge Paiva.
Idílio e campo de batalha
O que se encontra hoje no Buçaco, não é o éden, mas a mata ainda conserva o ambiente próprio das florestas primitivas e a fresquidão e o mistério dos grandes bosques, aliando ao carácter religioso do lugar o romantismo e a luxúria de alguns espaços, como a Cascata da Fonte Fria e o Vale dos Fetos. Não sendo o paraíso, o Buçaco é pelo menos um oásis, uma nascente permanente de água que alimenta fontes, lagos e as vizinhas termas do Luso.
É um cenário belo de mais para se imaginar como palco de uma batalha. Mas foi na serra do Buçaco que se travou uma das mais sangrentas batalhas da Terceira Invasão Francesa, durante a Guerra Peninsular. No dia 27 de Setembro de 1810, 50 mil soldados das forças portuguesas e britânicas, comandados por Arthur Wellesley, primeiro duque de Wellington, enfrentaram 65 mil soldados franceses liderados pelo marechal André Massena. As tropas coligadas conseguiram suster o avanço das tropas de Napoleão, mas no final desse dia jaziam no Buçaco cerca de cinco mil mortos, na sua esmagadora maioria franceses. Um obelisco, um museu militar e a oliveira onde o duque de Wellington amarrou o seu cavalo mantêm vivas as memórias dessa batalha.
Há também na entrada do Convento do Buçaco uma placa a lembrar que "o glorioso general" inglês pernoitou ali depois de ter derrotado os franceses. Na altura, o convento ainda era habitado pelos carmelitas. As ordens religiosas foram extintas em 1834, mas os carmelitas só abandonaram definitivamente o Buçaco em 1855. Trinta e um anos depois, por ordem do então ministro das Obras Públicas de D. Luís, Emídio Navarro, o convento foi parcialmente demolido para dar lugar a um palácio real.
Edifício neomanuelino projectado pelo arquitecto italiano LuigiManini(cenógrafo do Teatro Nacional de S. Carlos e autor do místico Palácio da Regaleira, em Sintra), o palácio ficou pronto em 1902, mas em 1907 foi convertido em hotel de luxo, vocação que ainda mantém. É um monumento notável, com elementos arquitectónicos inspirados no Mosteiro dos Jerónimos, na Torre de Belém e no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, e onde sobressai uma amurada com 32 colunas ornamentadas, talhadas em pedra de Ançã.
Rodeado de belíssimos jardins, exala um perfume encantatório que vai bem com a natureza sagrada e também romântica da mata, propícia até a alguns devaneios amorosos, apesar da bula papal que interditava a entrada no recinto a mulheres. Durante a construção do palácio real, D. Carlos, filho de D. Luís, mandou derrubar a Ermida de Santa Helena e erguer no seu lugar um chalet. "Dizem que era para a amante", explica António Jorge Franco.
O rei era um conhecido boémio, mas quem de certeza usufruiu do isolamento do chalet foi o seu filho, D. Manuel II, que lhe sucedeu, após o regicídio de 1908. A dois meses da implantação da República, o jovem monarca instalou-se no Buçaco, onde viveu um idílio amoroso com Gaby Deslys, uma bailarina e actriz que conhecera em Paris e que instalou no chalet de Santa Teresa. O caso era conhecido e não agradava à mãe, a rainha D. Amélia, que, conforme descrição feita por Ferraz da Silva, um dos estudiosos do Buçaco, no seu blogue bussaco.blogs.sapo.pt, terá feito o seguinte comentário: "Vim a saber pelas más-línguas que Manuel ainda tem uma paixoneta por essa divazinha do music-hall parisiense, Gaby Deslys, de origem marselhesa, cujo verdadeiro nome é Gabrielle Caire. Correm boatos segundo os quais Manuel segue as pisadas do pai e os seus esforços políticos serão imediatamente anulados por isso." E foram, como se sabe.
Décadas de abandono
Hoje, o chalet é uma ruína coberta de arbustos. No seu abandono, espelha bem a degradação que foi tomando conta da mata nacional e do seu património, desde as casas florestais às ermidas e capelas da via sacra. Nem as figuras bíblicas escapam. Está tudo vandalizado e mal tratado. É um cenário triste que soa a profanação, dado a natureza sagrada da mata. O mal começa nas redondezas, onde o nemátodo do pinheiro (um verme microscópico) levou à destruição de manchas enormes de pinhal, acentuando ainda mais a singularidade verdejante da Mata do Buçaco. A praga ainda não chegou lá, mas o abandono e o passar do tempo já fizeram esboroar pedaços do muro de 5750 metros de comprimento e três de altura que os carmelitas ergueram para proteger o seu deserto. Lá dentro, só o Hotel Palace do Buçaco e alguns dos edifícios anexos escapam. O resto encontra-se em escombros ou seriamente danificado. "É preciso recuperar tudo", reconhece António Jorge Franco.
O problema é antigo, mas foi-se agravando nas últimas décadas. "Antes, com a mata nacional sob a jurisdição do Estado, as pessoas estavam longe, o que criava problemas de gestão. Agora há uma cara a quem pedir responsabilidades", sublinha o presidente do conselho de administração da fundação que gere a Mata Nacional do Buçaco. A fundação foi criada oficialmente em 19 de Maio do ano passado, tendo como elementos principais o Estado e a Câmara Municipal da Mealhada, a quem cabe nomear o presidente (António Jorge Franco é vereador nesta autarquia). Todo o património existente, incluindo o Palace Hotel do Bussaco (mantém a grafia antiga), passou para a sua alçada.
Um ano depois, a mata está mais limpa, mas continua quase tudo por fazer. "Os primeiros meses foram passados a instalar a fundação. Só desde o início deste ano é que começámos a trabalhar com uma estrutura própria", justifica António Jorge Franco. Os problemas e potencialidades já estão inventariados no Plano de Ordenamento e Gestão da Mata Nacional do Buçaco desenvolvido pela Universidade de Aveiro para a Autoridade Florestal Nacional. O documento serviu, de resto, de base à candidatura feita ao Quadro de Referência Estratégica Nacional em 2007, através da qual foram recuperadas as Portas de Coimbra, a mais bela das seis entradas da mata.
Para a fundação, as prioridades também estão definidas: "Recuperar a via sacra para dinamizar o turismo religioso, construir um centro interpretativo [na antiga garagem do hotel], para que as pessoas que visitam o Buçaco saibam o que vão ver e recuperar e valorizar os trilhos existentes", enumera o presidente. Só falta encontrar os meios financeiros. Por agora, a fundação depende bastante das dotações da câmara e do Ministério da Agricultura, e a crise financeira e orçamental não ajudam muito. Mas António Jorge Franco acredita que "dentro de seis, sete, dez anos, vá lá, a Mata do Buçaco poderá sustentar-se a si própria" com as receitas de bilheteira, das rendas do hotel (que é explorado pela família Alexandre de Almeida há quase um século e em cuja adega repousa uma das mais cobiçadas garrafeiras nacionais, com mais de 200 mil garrafas, muitas de produção própria), do merchandising e da futura exploração turística das casas florestais.
O presidente da fundação espera também que a eleição das sete maravilhas naturais de Portugal possa trazer mais visitantes (o Buçaco é visitado anualmente por cerca de 100 mil pessoas). A mata é uma das candidatas, concorrendo na sua categoria com os parques de Sintra e a floresta laurissilva da Madeira. O padrinho do Buçaco é o escritor Miguel Sousa Tavares, confesso amante deste que continua a ser, apesar dos seus problemas, um dos mais refrescantes e belos recantos de Portugal. Degradado, mas belo.
Paulo Pimenta
In Jornal Público
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